Ressaca

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Os dedos percorriam as palavras com agilidade. As letras grossas, quase garrafais, eram sorvidas a cada página; ela não lia com os olhos, mas com a boca. Como digerir tudo aquilo senão com a boca? Era todo um mundo que se apresentava ali a sua frente, mas numa terra tão distante. Fora dando os primeiros passos assim, começando pelo volume menor, caminhando para o segundo e, já mocinha, encerrando tal capítulo com o último. Havia uma melodia que só aquele mundo continha, como aquela das conchas da praia. Ela se lembra da sensação: o cheiro incolor de folha nova, com uma pitada de sal do mar e o perfume de sua escola. As horas passavam num brincar de pique-esconde, no pula-corda, na próxima página, um mergulho de cor. Eram florescentes, iguais aos seus lápis no estojo – laranja, rosa e verde, e cada uma pintava seu céu, cada cor correspondendo a um livro a mais lido, um mundo a mais desbravado. Ela, tão pequena, se sentia tão forte quanto a personagem principal, que também era pequena, num mundo tão de gente grande. E então veio a ressaca. Naturalmente esperada e temida, ela veio como quem não quer nada, arrastando os anos e levando consigo os lápis de cor e as páginas que coloriam o céu de sua boca. Não havia mais o porto seguro do mar, ou das paredes rabiscadas da escola. O sal comera as páginas, as letras, as palavras, as cores. Ficara a embriaguez incômoda no estômago de uma criança agora no corpo de gente grande, nem tão grande, mas preto, branco e esfomeado.

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